A pessoa básica
Na Katha-upanishad 1.2.2, encontramos duas palavras para descrever dois caminhos de vida. São elas: shreyas e preyas, que significam o bem-maior e o agradável. Apesar de serem apresentados como shreyas e preyas, sendo shreyas o primeiro, este não é a escolha mais comum, a maior parte das pessoas escolhe preyas.
Preyas é o caminho do agradável, de escolher o que mais nos agrada e dá satisfação imediata. É a escolha por aquilo que traz à pessoa o prazer imediato. Com o olhar somente para o prazer, e não para um bem-estar maior, mais duradouro, que não seja somente produzido pela satisfação dos sentidos.
Preyas é a escolha que é feita com base nos gostos e aversões, raaga e dvesha, para satisfazer ou acalmar a pressão que eles exercem sobre a pessoa. Na escolha de preyas, o caminho é de ação para alcançar a satisfação imediata desejada. É o caminho da vida em direção à satisfação dos desejos – sejam conquistas de riqueza, fama, poder e prazeres vários, inclusive o céu, após a morte, mas isto sem considerar o dharma.
O caminho de shreyas é aquele em que o dharma, o agir corretamente, é considerado, respeitado. Dharma inclui os valores universais de verdade, sinceridade, não-violência e tantos outros, e o cumprimento do respectivo papel nos relacionamentos humanos. Está incluído em shreyas a busca pelo conhecimento da verdade maior que tudo permeia e o libertar-se da visão única de si mesmo como limitado e carente, chamado de moksha. É o ver-se limitado e carente que pressiona a pessoa a agir para sua satisfação pessoal somente, sem importar como, ignorando os valores universais.
O caminho para o bem-maior, shreyas, é a busca pela maturidade emocional e pelo autoconhecimento. Apesar de ações várias – física, oral e mental – fazerem parte de qualquer caminho de vida, aqui o objetivo não é somente a aquisição de prazeres, a satisfação dos desejos. Sim, haverá desejo, gostos e aversões também, satisfação e prazer, pois tudo isso inevitavelmente constitui a vida humana, mas esses serão governados pelo dharma, pela tentativa de fazer a ação de forma apropriada.
É no foco por detrás das ações que vemos a diferença entre os dois caminhos, o foco do objetivo maior da vida. Esse foco ou objetivo muda o colorido do caminho de vida; faz com que uma vida de ação possa tornar-se uma vida de Yoga.
Ao viver cada momento de nossa vida, fazemos papéis, não podemos fugir de fazermos papéis. Cada um de nós é uma pessoa com papéis que possuem scripts. Um papel de amigo, por exemplo, que construímos a partir do valor de “como ser um amigo” e nossas ações específicas de amizade a cada momento, em cada situação. Se tivéssemos um papel único na vida, fazê-lo seria muito fácil, porém temos muitos papéis a cumprir ao mesmo tempo.
Quando um ocidental vai à casa de um indiano, não consegue entender como ele tem tantos nomes, cada membro da família o chama de forma diferente. O nome que o amigo ocidental conhece nem é pronunciado na casa. Isso é porque os nomes dados significam o relacionamento com aquelas pessoas. Por exemplo, ele será chamado de filho, irmão, cunhado, neto, tio materno, tio paterno, marido, pai etc. Ao saber e mencionar o tipo de relacionamento, temos uma dica do tipo de atitude, linguagem e ações que devemos usar. Isso torna as relações mais fáceis. Uma relação em que não sabemos o que exatamente somos da outra pessoa, nos dá insegurança e confusão na hora de agir com a pessoa e de nos referir a ela para com os outros. A sociedade indiana ajuda seus membros ao denominar as relações interpessoais.
Fazemos sempre muitos papéis, o que torna a vida complexa. E fazer cada papel adequadamente é o dharma numa sociedade. Mas temos também o dharma para conosco, um respeito para com a pessoa que somos. Para proteger esse dharma, temos que apreciar não só cada papel, mas a pessoa básica que cada um é.
A pessoa básica faz papéis, mas é livre de papéis. Essa pessoa tem que ser reconhecida. Os papéis são comuns e mudam constantemente. Mas nenhum papel é absoluto, todos os papéis são relativos, mutáveis e perecíveis. A pessoa básica é aquela que você é quando está consigo mesmo, num momento de paz, na meditação, na apreciação de algo belo.
A pessoa básica faz sempre o melhor que pode em cada papel, mas pode falhar, errar. Mas sempre o melhor possível é feito. Por mais incrível que possa parecer, não é feito ainda melhor porque não é possível por várias razões, naquele momento. E é isso que se faz necessário reconhecer – cada papel é feito no seu melhor. Se a pessoa falha de qualquer maneira que seja, eis aí uma constante possibilidade.
O erro, a falha, a limitação são possibilidades dentro da execução de qualquer ação. E a ação feita continua sendo sempre a melhor possível naquele momento que é feito pela pessoa.
Com isso, não se quer dizer que todas as ações são corretas ou aceitáveis. Evidentemente existe o que é correto, ou adequado, e o não-correto ou não-adequado. Ainda que a ação tenha sido a melhor possível, ela pode ser inadequada por ser algo que não deveria ser feito daquela forma ou por causar sofrimento ao outro. Porém, quando quem faz a ação entende que faz o melhor que pode, ela não olha mais para trás com culpa e arrependimento, e sim, para frente – para aprender a fazer melhor ainda.
A pessoa básica faz seu melhor em cada papel. Se o foco estiver nos papéis que faz, haverá insegurança e julgamento, insatisfação e medo de errar. Mas se o olhar estiver para a pessoa básica que é livre de papéis, mas que pode e faz papéis, há o entendimento da totalidade de si, o ser básico. Na independência dos papéis, esses podem ser realizados sem que adjetivem a pessoa.
A descoberta da pessoa básica traz acomodação da limitação dos papéis, na acomodação há acolhimento, no acolhimento há paz. A paz que sou eu – a pessoa básica.
Gloria Arieira