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Se Deus quiser

“Se Deus quiser vamos sair dessa”, dizem por aí. E ao estudarem Vedanta, dizem então: “Se Ishvara quiser!” Mas quem é esse Ishvara, afinal? Será o presidente ou o primeiro-ministro? Será alguma autoridade que tudo decide? Mais uma vez temos que dizer: entender Brahman é fácil; difícil mesmo é entender Ishvara.

Ele é o criador? Sim! Causa inteligente mas causa material ao mesmo tempo. Não é um deus religioso no qual é obrigatório acreditar. Ishvara tem que ser compreendido, pois só assim poderemos nos relacionar com ele adequadamente. Como se pode, ou se consegue, estabelecer uma relação com alguém que não conhecemos? Se ainda assim houver alguma, será uma relação fantasiosa, fruto de minha imaginação ou confusão – talvez, no máximo, de um conhecimento parcial ou de pura crença.


Então, como podemos estabelecer uma relação segura, definitiva e clara? Afinal, sem clareza, não há paz; há dúvida, incertezas e até medo.

Qualquer criação tem duas causas – a causa inteligente e a material. Em geral, elas são vistas como elementos separados: há a pessoa que faz o pote e há o barro, o material do pote. A inteligência é responsável pelo objeto criado – por escolher como e para quê criá-lo. O criador, portanto, sabe como criar e tem um plano para a criação, ou seja, tem um propósito. Já o material é sempre obtido em algum lugar. Quando se fala em Ishvara, as duas causas estão no mesmo lugar, como a aranha e sua teia, como o sonhador e seu sonho. O ser inteligente e o material da criação não estão separados. Assim é Ishvara, dizem os Vedas. E há aí uma lógica que podemos seguir e entender.

O indivíduo está no universo e tem um corpo, que é limitado por tantos outros. O corpo de Ishvara é todo o universo e, assim, não tem como ser limitado nem competitivo, pois tudo é ele. Ele não tem ego, como o indivíduo tem. Não tem vontade nem faz nada. Então, “Se Ishvara quiser” é uma frase que não tem sentido.

Ishvara mantém o universo em funcionamento, mas não por suas escolhas. Sua inteligência está nas leis que o governam – leis da física, da química, da psicologia, que dão conta da natureza do fogo, da água, do ar, da terra, dos corpos celestes, de tudo, enfim.

O universo todo está em movimento de acordo com leis que são constantes e infalíveis. As leis são uma expressão da inteligência que é Ishvara. Uma delas é a lei do karma – bela, justa e complexa. Portanto Ishvara não decide se vou adoecer e morrer; nem se vou me curar caso adoeça; tampouco se serei feliz ou não. Ele não decide nada, não faz nada. Tudo funciona num fluxo contínuo de causa e efeito, obedecendo às leis que são a estrutura do universo e que não são inertes, mas inteligentes, pois vemos inteligência, conhecimento, em tudo. É a inteligência que é Ishvara e está presente em toda parte, esperando ser percebida por você. Ao olhar para todos os lados, o que você vê é somente conhecimento que ganha forma – o universo, que é Ishvara, e no qual você está incluído. Ishvara se expressa através de tudo, através de cada ser vivo, como você, que acredita ser separado, que dispõe de um ego, ahamkara, e se considera muitas coisas, em especial separado e diferente de Ishvara. Também pensa que se ele quiser, tudo vai dar certo, e que, se ele não quiser, não vai; ou que ele não existe e a responsabilidade de tudo parece ser sua!

Mas o todo, para ser todo, tem que incluir tudo, até você. E tudo está em ordem, pois as leis são infalíveis. Por isso, só resta a cada um viver cada dia que se apresente, pois para o ser humano, ao contrário do que acontece com os animais, existe um tanto de livre-arbítrio. E viver com surpresa e encantamento, da melhor maneira possível, pois viver é fácil e difícil, prazeroso e extenuante, produtor de alegrias e sofrimentos, uma jornada repleta de propósito, mas que por vezes parece não ter propósito.

Quando só vejo a mim, isolado de tudo, não consigo relaxar para conseguir ver mais do que uma pequena parte do todo. E uma visão única, parcial e isolada de qualquer coisa é, além de injusta, produtora de sofrimento – ao contrário da visão inclusiva e reconfortante do todo que é Ishvara, daquela visão a partir da qual podemos dizer, entendendo a profundidade do que estamos a dizer: “Vamos ver. Fiz o que pude. Agora está nas mãos de Ishvara, da ordem que é Ishvara.”


Om tat sat.

Gloria Arieira







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