Uma cultura diferente da nossa
Quando visitamos outro país, levamos conosco nossa bagagem, nosso conhecimento, nossas referências e nossa forma de vida – que incluem os padrões de comportamento nos momentos de ganhos e comemorações e nos de perdas e sofrimentos. São expressões de sentimentos, valores, crenças e hábitos por meio da linguagem, de atos e atitudes que são cultivados e repetidos por gerações.
Quando chegamos a um lugar cuja cultura é nova para nós, percebemos a beleza estética do local e podemos ter imenso prazer com alguma coisa que percebemos como diferente e bela presente ali. Mas há algo mais profundo do que a estética, pois há em cada cultura uma mensagem maior que pode não ser captada. A cultura local tem seus valores, suas prioridades e importâncias sociais. Isso não conseguimos ver – pelo menos não numa única visita. E geralmente não lhe damos importância, já que estamos impregnados da nossa própria cultura e do nosso padrão de comportamento, que incluem nossa roupa, nossa linguagem e nossas atitudes. Queremos somente passear e relaxar.
É o que acontece quando se visita a Índia. Saindo do mundo ocidental, a pessoa vê muitas coisas lindas e diferentes ao chegar lá. Admira-se, fantasia-se com elas, compra e leva para casa. Uma beleza diferente é apreciada, mas o coração do lugar e de seu povo não é entendido. Para isso a pessoa teria que largar por ora seus próprios conceitos e expectativas, abandonar julgamentos, comparações e exigências e tentar ver o que está à sua frente, sem tudo isso que está preestabelecido em sua mente – o que é muito difícil. Fazemos então uma mescla de nós mesmos e da Índia que estamos a ver.
Mas esse encontro é misterioso, pois existem muitas coisas vistas que não são evidentes e que não conseguimos decifrar nem entender assim como são: sua história, seu passado, os obstáculos e as soluções encontradas... Enfim, sua vida construída até aquele momento. Quando o que vemos é muito diferente do que estamos acostumados a ver, não conseguimos decifrá-lo. Assim é que o misterioso não é entendido, mas interpretado segundo padrões estrangeiros e mantido, portanto, desconhecido, oculto.
Para olhos ocidentais, muitas coisas são diferentes na Índia. A história indiana não é estudada nas escolas ocidentais, pouco sabemos do que aconteceu por lá. A filosofia antiga estudada em todo o mundo ocidental é a grega, assim como gregos são os filósofos conhecidos. Quando se olha a Índia é sempre em estudo comparado, referenciado e “encaixado” pelo pensar ocidental. Como podemos entender o que dizem e fazem se a referência é sempre estrangeira?! Assim, não há entendimento, mas julgamento ou interpretação. O olhar já está comprometido! Até mesmo quando desejamos ajudar, colaborar, o ponto de referência é estrangeiro, e não o da necessidade local! Que tipo de ajuda é essa que determina o que o outro deve receber e como deve reagir?!
Isso acontece quando visitamos a Índia e também quando conhecemos alguém de uma cultura diferente da nossa.
A Índia é o berço da cultura dos Vedas. Encontramos indianos de diferentes religiões, todas acolhidas no país, mas a origem das várias religiões, sejam as bíblicas – judaísmo, cristianismo e maometismo –, sejam o parsismo – do Irã –, está fora da Índia. O sikhismo, o budismo e o jainismo, no entanto, nasceram na Índia e têm muitos pontos em comum com os Vedas. A cultura original da Índia é a cultura védica há milhares de anos.
O que é mais diferente e singular na Índia, na tradição cultural dos Vedas, é a dedicação milenar exclusiva de famílias à memorização e ao estudo do significado dos Vedas. A cultura e sua preservação estão alicerçadas naqueles que mantêm os Vedas vivos. Os Vedas têm uma visão holística do ser humano, todos os assuntos estão conectados entre si, como o autoconhecimento, a ciência da saúde, a prática de yoga e pranayama, a dança, o teatro, a música, a arquitetura e tantas outras áreas do saber – todas abordadas nos Vedas.
Ao redor dos templos sempre existiram comunidades que sustentavam as atividades dos templos, além do estudo rigoroso e ensino dos Vedas. Hoje temos essa prática antiga ainda viva no Sul da Índia. Nas redondezas dos templos, há áreas chamadas Agraharam, onde é possível escutar cantos védicos durante todo o dia, desde bem cedo, quando passamos por ali. Professores e alunos se reúnem para aulas.
Perto dos templos podemos encontrar um ambiente de tranquilidade, dedicação e harmonia. Esses professores e alunos cantam os mantras védicos para a paz de toda a humanidade. Se preocupam em preservar a paz em toda a comunidade, em todo o país e no mundo. A alimentação totalmente vegetariana e suas práticas diárias têm foco no respeito e na não violência com qualquer pessoa, animal ou elemento da natureza, contribuindo para a paz e harmonia de todos. Eles se vêm como responsáveis pela tranquilidade e pelo bem-estar de todos; fazem orações e rituais para todos, e não para si e suas famílias exclusivamente. Na proteção ao conhecimento e com o estilo de vida de dedicação a todos, esses professores e alunos preservam o conhecimento que dá estrutura à cultura viva em todo o país há milhares de anos.
Quando visitamos o Sul da Índia e vemos um Agraharam, pode nos saltar aos olhos uma aparente e deliberada separação, como se esses estudiosos e cuidadores dos templos fossem arrogantes e tivessem uma atitude de superioridade em relação aos demais. Porém, não é isso. Os Agraharams existem para que esses estudiosos devotados ao divino possam viver uma vida simples dedicada aos estudos e às práticas necessárias para a paz e o bem-estar de todos, para que toda a comunidade possa usufruir de seus cantos, rituais e orações. Enquanto eles dão exemplo e pensam em todos, os outros grupos que compõem a sociedade são inspirados também a contribuírem com suas tarefas. Assim todos podem ser beneficiados, como diz Sri Krishna na Bhagavadgita 3.11:
Parasparam bhavayantah sreyah paramavapsyatha.
Contribuindo uns para os outros, todos alcançam o bem maior.
E quando todos fazem sua parte, seu dharma, todos são abençoados com o bem-estar. Um inspira o outro a cumprir seu papel, pois a manutenção do dharma depende de todos os membros da comunidade. Os estudiosos, cumprindo seu papel com o olhar para toda a comunidade, inspiram todos os outros a também cumprirem com seus devidos papéis.
Toda essa complexidade da sociedade indiana pode não ser vista em algumas visitas. O visitante poderá ser levado, por seus próprios preconceitos, a concluir que há injustiça e desorganização social, quando na verdade há uma diferente estruturação social que funciona.
Para poder ver o outro e ajudá-lo, se for necessário, se faz essencial que eu possa vê-lo com os olhos dele e possa estar disponível para abrir mão dos meus julgamentos e simplesmente olhar e ver o outro, o diferente. Isso sem deixar que meu olhar seja comprometido e aprisionado. O que é comum a todos os seres humanos em seu mais íntimo são os valores universais, o dharma, mas as expressões humanas são infinitas e todas são válidas e possíveis, desde que haja respeito, sinceridade e não violência.
Que cada um de nós possa proteger o dharma e estar preparado para acolher as formas de expressão com surpresa e encantamento pela mera variedade que existe no universo – as formas de Ishvara.
Hari om,
Gloria Arieira
Esta leitura me deu saudades da Índia!
Harih om
olá Glória, o texto acima é realmente sob múltiplos aspectos inspirador.
a citação da Gita é mais do que oportuna, ela ajuda a vencermos o egoísmo em que nos encontramos imersos, vivendo em uma sociedade alicerçada tão injusta..
eu gostaria apenas de fazer um breve comentário uma vez que vc tocou nos gregos.
há no Fedro de Platão uma passagem muito interessante que se aplica com precisão à sua mensagem. O trecho diz algo como: a beleza tem a vantagem de poder ser vista, enquanto a virtude não.
assim compreende-se que o viajante que vc cita pode ver muitas coisas belas e se encantar com elas, enquanto a sabedoria e a virtude, ainda que sejam o alicerce de…
Estou começando agora as leituras e a prática. Gostei muito desse texto.
Esse assunto é mesmo muito interessante!